segunda-feira, 12 de junho de 2017

Foi Intenso



No começo do ano escrevi uma carta. Era uma proposta para a criação de uma peça teatral, da Cia. Intenso, da qual comecei a participar este ano.
Depois de 20 anos sem atuar, resolvi voltar ao teatro.
Thiago Franco, o diretor mediador, posso chamar assim, articulou lindamente todas as cartas de todos os participantes do grupo e criou um espetáculo emocionante e intenso.
A única diretriz inicial era a de que a carta relatasse uma travessia. Eu fiz a minha, na época ainda lidando com essa minha jornada. Não foi fácil, mas, agora, sinto que já me livre desse "um anel" no fogo da Montanha da Perdição em Mordor e posso compartilhar com todos.
Segue minha carta, minha travessia...



São Paulo, 31 de janeiro de 2017.
        
Travessura: ação de pessoa travessa. Travessa que também é sinônimo de travessia. Mesma grafia, só muda o ê ou é. Sou muito travessa então, no sentido de tantas travessias que travessei, não só de travessuras, mas também. Travessias de todos os tipos, alegres, tristes, introspectivas ou para o mundo.
         Quando penso em travessia, logo me vem à mente a saga do “um anel”, sabe, aquele do Sauron? Afinal, o que não são algumas de nossas travessias, senão variações da jornada até a Montanha da Perdição em Mordor para destruir o “um anel” no fogo? Mas que papo mais nerd...
         Mas foi isso, numa das inúmeras vezes em que eu estava assistindo O Senhor dos Anéis me dei conta da metáfora, quais anéis eu já tinha destruído? Sim, esta travessia que vou narrar aqui não é alegre, embora possa ter um final feliz, depende do ponto de vista. Às vezes parece que ainda não larguei o “um anel”, ou que ele ainda está caindo. Então, vou narrá-la em terceira pessoa.
         Era uma vez uma mulher que curtia vida adoidado. Uma noite ela tinha que decidir entre ir numa festa com amigos ou ir no boteco de outra amiga. Ela foi no boteco, era mais perto, dava para ir a pé. Então, lá ela conheceu “um sujeito”. Não era a primeira vez que ela conhecia um sujeito, lembra, ela estava curtindo a vida adoidado. Mas esse era o “um sujeito”. Então ela se apaixonou. Também não era a primeira vez, ela vivia se apaixonando, mas dessa vez ela não desapaixonou, não enquanto podia ou devia.
         Por um lado ela estava cansada de curtir tanto e pensava na ideia de ser mãe, de esposa não muito, mas quando percebeu, o “um sujeito” estava morando na casa dela, até hoje ela não sabe direito como isso aconteceu. Mas ok, ela dizia que ele era diferente dos outros: “chega de artistas aquarianos e piscianos, esse era corretor de imóveis capricorniano”. Mas o que esperar de um namoro que começa num boteco, sem ofensas.
         E começa a jornada a Mordor – me desculpem os que não conhecem O Senhor dos Anéis, mas depois eu explico. O “um anel” começou a pesar em seu pescoço, literalmente. Era um relacionamento tóxico. E sim, ela ficava invisível quando o usava, invisível para os amigos e familiares que não sabiam o que estava acontecendo, ou não queriam ver.
         Mas ela também não sabia direito o que estava acontecendo, ela acreditava que violência, só existia física. Como ela nunca sofrera esse tipo de agressão, não sabia como lidar. Fora a vergonha que sentia, pois mulheres que passam por isso são aquelas que não tiveram oportunidades na vida, não estudaram tanto e por isso não sabem como se defender, ou as que não ligam, ou como dizem por aí: as que gostam mesmo de apanhar. Mais um dos truques do “um anel”.
         Ela não gostava de apanhar, não apanhava, já que ela também não o confrontava, afinal, o “um sujeito” era, tipo assim, bem grande, gritava bem alto, dava era medo mesmo. Ele não a atacava, mas quebrava coisas, chegou a quebrar o próprio dedo na parede. Ela então o carregava como um fardo.
         Mas, todo viajante tem seu companheiro, todo Frodo tem seu Sam. Embora ela seja o Sam sempre que faz teste de personalidade no Facebook e, na sua vida, sim, ela tem esse perfil, dessa vez era a sua carga e só ela poderia chegar lá e por fim em tudo isso. Mas o que seria de nós sem nossos companheiros de travessia, não é mesmo? Um dia, ou melhor, numa noite, daquelas que ela apelidou de “noites do terror”, enquanto o “um sujeito” gritava todo tipo de xingamentos, sua filha, ah sim, ela teve uma filha com o vendedor capricorniano, durante essa travessia, sua filha com 10 meses de vida estava chupando o dedo e olhando tudo, como se fosse essa a vida mesmo, normal assim. Foi como quando o Frodo caído, nas planícies de Gorgorth, não conseguindo mais se levantar, não acreditando mais ser possível seguir em frente e destruir o “um anel”, o Sam, melhor companheiro de todos, uma vez que não pudesse carregar o anel ele mesmo, levanta e carrega o próprio Frodo. Não foi assim que nossa travessa viu na hora, claro, devastada por 3 anos de relacionamento abusivo, ela só pensou que, vendo aquilo, a filha iria um dia arrumar um sujeito assim pra namorar, e ela não poderia dizer nada, já que esse era o exemplo. Nesse momento, carregada pela força da filha, ela foi e deu um basta, lançou o “um sujeito” para fora, para fora de sua casa, fora de sua vida.
         Sem o peso do “um sujeito”, então, ela começou a perceber o que tinha sofrido, começou a analisar essa travessia, aprendeu e vem aprendendo mais sobre si mesma e sobre sororidade (embora o Word não reconheça essa palavra) e se sentia pronta e livre para novas travessias, travessas e travessuras. Embora, assim como Frodo, de certos ferimentos ela nunca irá se recuperar totalmente.
         Caro leitor, desculpe-me pela analogia com a obra de Tolkien, talvez, caso você não a conheça, não consiga captar totalmente as metáforas escritas aqui, ou talvez as capte de outra forma, mas isso foi uma tentativa de deixar essa travessia mais leve para nós.

         Um abraço,
Val.